terça-feira, 25 de novembro de 2014

Desencontros num programa de TV

    


      No dia 20 de novembro (quarta-feira) foi celebrado o dia da Consciência Negra, portanto, feriado nacional que tem por objetivo a reflexão sobre o posicionamento do negro na sociedade brasileira. A data escolhida coincide com o aniversário da morte de Zumbi dos Palmares, considerado um dos símbolos da resistência negra à escravidão de forma geral. Como não poderia deixar de ser, a pauta explorada por todas as mídias, principalmente pela televisão, versava sobre o racismo, a importância cultural do negro e o seu papel no imaginário de uma sociedade que se intitula plural.
   O programa Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo de Televisão, abordou o tema preconceito racial justamente no dia reservado à Consciência Negra. A proposta era aprofundar a questão através dos depoimentos de representantes da sociedade. O conhecido sofá onde todos se encontram era composto por três atrizes brancas, um ator negro, um cantor de rap negro, uma educadora branca, na função de especialista, um menino negro, por volta dos 10 anos de idade, e um médico negro. A plateia do programa, naquele dia em especial, era composta em sua maioria por pessoas negras.
    É muito interessante ver a forma adotada pelo programa e, logicamente, pela emissora para tocar em um assunto extremamente delicado, para o qual todos insistem em fechar os olhos e acreditar que todas as vezes que o tema é abordado está se tocando em uma velha ferida que já fora cicatrizada com a passagem do tempo.
    Como todo programa de auditório, o da jornalista/apresentadora Fátima Bernardes tem a função de entreter e trazer informação. A semiótica é usada na formação de uma linguagem onde, teoricamente, todas as vozes são representadas. Mais uma vez, a mídia hegemônica tenta disfarçar o seu discurso homogeneizante, através da fala sincrética.

Emoção à distância

     O tempo da televisão costuma ser exíguo. Portanto, exigir aprofundamento em temas complexos se torna extremamente complicado, mas um debate de qualidade é possível. O programa reproduziu o velho racismo ao qual estamos acostumados a assistir. Fátima cumpriu o seu papel de apresentadora, mas a fórmula jornalística esteve, como sempre, presente na atração. Uma prática comum no jornalismo ter a figura do especialista, o estudioso que fundamenta a argumentação, neste caso representada pela educadora branca. Outra vez, o negro não é chamado para debater questões pertinentes aos seus pares. É como se não existissem pensadores negros, capazes de discutir a história do seu povo e o seu posicionamento na mídia.
      Aos negros presentes, sentados ao sofá, restaram os relatos empíricos. Foram realizados os velhos questionamentos, os convidados negros contaram como fazem para se defender do racismo sofrido diariamente. Naquele momento, a oportunidade de reforçar e criar uma referência para o menino negro – que estava justamente reivindicando e relatando o quanto lhe causava estranheza a ausência de personagens que retratem a história do seu povo – foi jogada fora.
     No grande jogo das representações, ao qual a televisão pertence, mais uma vez é oferecida ao branco a voz para falar de uma prática que sempre foi perpetrada por ele mesmo, e lhe foi dado o lugar do intelectualmente superior. Quando assistimos a esse tipo de prática, um debate que tinha tudo para ser enriquecedor acabou se diluindo. A televisão, quando faz isso, desperdiça todo o seu potencial educacional. Naquela manhã de quarta-feira, o Encontro com Fátima Bernardes apenas ratificou o que foi dito por Vinicius de Moraes no “Samba da Benção”: “Porque o samba nasceu lá na Bahia./ E se hoje ele é branco na poesia./ Se hoje ele é branco na poesia./ Ele é negro demais no coração.” Aos negros cabe apenas o lugar da emoção à distância da intelectualidade, do pensamento pertence aos brancos. Enquanto for dessa forma, será mínimo o número de negros nos cursos de medicina, direito e engenharia. Enquanto isso, a universidade segue dividida em cursos para negros e cursos para brancos. É o tudo segregado e separado, trajado de tudo junto e misturado.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Macaco, olha o seu rabo



O jogo Cruzeiro e Real Garcilaso, pela primeira fase da Taça Libertadores da América na quarta-feira (11/2), foi marcado pelo show de intolerância e pela falta de educação dos torcedores do time peruano. O jogador Tinga, ao pegar na bola era xingado, vaiado e humilhado no estádio Huancayo, no Peru. Da arquibancada eram emitidos sons e gestos característicos de macacos com o intuito de desqualificar o jogador.
 As imagens, que correram o mundo, causaram espanto e indignação. Ao terminar a partida, o jogador estava emocionado e incomodado. Deu uma entrevista à beira do campo dizendo que trocaria todos os títulos da carreira por uma solução que erradicasse definitivamente o racismo dos estádios em todo mundo. No Brasil, a cobertura esportiva foi intensa. A imprensa não perdeu tempo, repudiou os atos racistas da torcida, cobrou uma postura enérgica da CBF e Comenbol (Confederação Sul-Americana de Futebol).
 A imprensa esportiva mais uma vez demonstra certa dificuldade em tratar das questões que fogem ao âmbito esportivo. Falta aprofundamento, um debate em que sociedade e imprensa caminhem de mãos dadas, com objetivo de deslindar a questão ou quem sabe até mesmo criar uma mesa redonda para discutir essa relação entre preconceito e esporte. Esse é um fenômeno atual, ou será que sempre foi dessa forma? A imprensa esportiva simplesmente apontou o dedo para os atos racistas da torcida peruana esquecendo-se de olhar para dentro de casa. Será que nós, brasileiros, não somos racistas?
 As teorias racialistas existem desde o século 19 até a ciência foi usada para tentar comprovar a inferioridade intelectual dos negros. O que se viu durante o desdobramento da história do jogador Tinga foi desconhecimento ou até mesmo desinformação por parte de quem pretendia discutir o assunto. Alguns colunistas esportivos, em sites, rádios e jornais, afirmavam categoricamente que a América do Sul é um continente atrasado, preconceituoso e hipócrita. Mas essa não é uma situação diferente no continente europeu – por lá, os atos racistas tem sido cada vez mais recorrentes. Comentários como esse, que vimos e ouvimos disseminados pela mídia, são tão preconceituosos quanto os atos racistas vistos no Peru.
 O brasileiro acredita que vive em uma democracia racial, luta pela manutenção da imagem do homem cordial e esquece o quanto o racismo está entranhado no cotidiano. A questão não é apenas cultural, social ou econômica, pois colocar o racismo ancorado nesses pilares é minimizar e naturalizar tema. A sociedade fecha os olhos para o preconceito racial, que só parece existir quando o jogador é achincalhado ou quando a manicure é discriminada pela cliente no salão de beleza.
 Da chegada de médicos cubanos, recebidos de forma hostil, à quantidade de jovens negros que são mortos pela polícia na guerra das ruas e o fato de termos que programar um sistema de cotas para que negros e pobres tenham acesso ao ensino superior são exemplos que mostram o quanto o racismo está arraigado na sociedade.
 Uma das funções do jornalismo é prestação de serviço, tocar em questões que incomodam. O que é reproduzido no futebol é o reflexo do que ocorre na sociedade como um todo. Enquanto não olharmos o quanto somos racistas, enquanto não tentarmos entender a origem do nosso preconceito, as cenas que ocorreram com o jogador do Cruzeiro, além de outras que fingimos não enxergar, irão se repetir.